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quarta-feira, 7 de dezembro de 2016

A esquina silenciosa e o palco vazio(3)

Outra coincidência: Amarildo e Getúlio não tinham pai.  Amarildo tinha acabado de perder o pai, quando passei a morar na esquina; até lhe dei pêsames.
O pai de Getúlio morreu quando ele era criança.
Getúlio via o pai como um herói, sentindo muita falta dele.
Um dia, numa conversa, entre nós três, ao ele recordar do seu progenitor, com um semblante bem triste, disse para o Amarildo: "Por que a gente não tem pai?"  Amarildo, como de costume equilibrado e humilde, respondeu: "temos que conformar".
Ironias da vida, eu tinha pai, um pai ao mesmo tempo ausente, bruto, ignorante e autoritário, um pai bem diferente de um herói, mais pra vilão.

Logo quando passei a morar na esquina, eu era mais alto do que os Amarildo e Getúlio.
Meus pais mudaram de residência-fomos para um bairro bem distante- em 30.12.1973.
Me mudei bem a contra-gosto, sob protesto, porque eu gostava da esquina, tinha esperanças de voltar a ser amigo do Getúlio, tinha desejo de namorar uma menina, num bairro próximo e detestava morar longe do centro da cidade.

Vez ou outra, eu aparecia na esquina, tendo contato com uns poucos colegas.  Sempre passava na casa do Amarildo.  Fiquei impressionado de como o Getúlio ficou alto(tinha, no mínimo, 1,90 cm de altura).

Um dia, me deparei com o Amarildo , num ônibus do bairro em que eu morava.  Surpreso: peguntei o que ele estava fazendo por lá.  Ele respondeu que foi visitar um colega, que morava bem próximo da minha casa.
Não foi me visitar.  Ele nunca me visitou, depois que me mudei da esquina.
O ano era 1977. Não mais voltei à esquina.  Nunca mais tive contato com o Aroldo e o Getúlio.
Foi o fim da minha saga na esquina.

Lamentei muito a perda da amizade com o Getúlio.  Mas, ele me parecia uma metamorfose ambulante.
Antes, discordava de mim; depois ficou parecido comigo... ao fazer minhas visitas na esquina, tive a impressão que ele parecia ser outra pessoa... achei-o até pedante, metido.
Sua única irmã era muito legal.  No contato que tive com Getúlio e ela, achei-os pessoas simples, tranquilas.
Já a mãe deles , era geniosa, orgulhosa, uma pessoa de difícil trato.
Suspeito que Getúlio, com o decorrer do tempo, pôde ter ficado parecido com a mãe.
E, certamente, a cabeça dele deve ter mudado, à partir da pós-adolescência.
Sem pai e com uma mãe super protetora , que o mimava muito, frágil, inseguro e medroso, se tornou um homem alto e forte, e ele tinha pinta de galã.
Acredito que ele acabou se achando o máximo, um cara bem poderoso.
Mas, posso estar enganado.

Caso os dois estiverem vivos, creio ser até possível que nem sem lembrem de mim.
E, venhamos e convenhamos, foram apenas momentos que passei na esquina.
Pensando bem, Amarildo e Getúlio eram pessoas de fácil trato; eu tinha fama de genioso.
Eles eram estudiosos; eu detestava estudar.
Eram sociáveis, eu nem tinha percebido que, na verdade, eu era um solitário, anti sociável.
Ignorante, eu não havia percebido que eu nada tinha a oferecer.

Até hoje, em algumas noites de sono, sonho com a esquina.  Claro que Amarildo e Getúlio costumam a estar presentes.  Sonho, e muito, que voltei a morar no mesmo apartamento.
Mas, quando saio e fico na esquina, costuma não ter ninguém perto.
Às vezes, os dois estão presentes(não é muito comum a presença dos dois juntos).
Na maioria das vezes, sinto que me rejeitam.  Noutras vezes, eles me dão atenção, mas sinto que é só por uma questão de gentileza, que , na realidade, nada represento para eles.

O bobo, o esquisito, o temperamental e desajeitado, ainda sonha com a esquina.
Num dos sonhos, da esquina, percebi que um quarto do apartamento , quarto que pertencia aos meus pais, estava cheio de areia, até no teto.
O castelo de areia da esquina desabou, há muito tempo.  A esquina é silenciosa, meu palco está vazio e ninguém mais se lembra do bobão aqui.

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